O financiamento advindo de doações da própria sociedade não é ainda uma das principais formas de sustentabilidade do campo das Organizações da Sociedade Civil (OSCs), majoritariamente promovido por recursos públicos, privados e da cooperação internacional, estes últimos destinados por instituições internacionais que financiam agendas dos direitos humanos e a atuação de organizações brasileiras ligadas às mesmas.
Dar novos rumos a esse cenário é fundamental, principalmente quando o assunto é o fortalecimento das OSCs. Conhecer o perfil e o comportamento dos doadores é, portanto, ponto de partida fundamental para que esse campo possa traçar as melhores estratégias de mobilização de recursos para desenvolver sua atuação com autonomia, promovendo transformação social e, consequentemente, o fortalecimento da democracia brasileira.
Pensando nisso, Conectas e Fundação Getulio Vargas (FGV) estão desenvolvendo uma pesquisa sobre o perfil do doador médio brasileiro. O projeto foi contemplado pelo edital Fundo BIS – primeiro fundo brasileiro destinado exclusivamente para ampliar a cultura, o volume e a qualidade das doações no país.
A percepção da existência de uma lacuna de informações a respeito de um tipo de potencial doador, o brasileiro com alta faixa salarial, foi o disparador para a ação. Pesquisas existentes sobre o assunto traçam esse panorama a respeito dos pequenos ou grandes doadores, mas não contemplam esse grupo que pode ser ativado e mobilizado para doar mais.
Para Juana Kweitel, diretora executiva da Conectas, a pesquisa ajudará ainda a comprovar ou não algumas hipóteses acerca do campo de atuação em defesa de direitos, um dos recortes do estudo. A primeira é a de que os brasileiros não querem doar para esse segmento em razão de um discurso criminalizatório presente na sociedade, o de que “defender direitos humanos é defender bandidos”. A segunda é a de as pessoas preferem doar para causas de assistência direta e não para organizações que atuam por meio de estratégias de incidência política.
Cultura de doação no Brasil
Os desafios para a ampliação e qualificação da cultura de doação no Brasil são diversos e passam tanto por questões culturais, quanto pela grave crise econômica e política vivida atualmente pelo país, bem como por um ambiente jurídico que, em vez de incentivar, muitas vezes dificulta a doação voluntária dos brasileiros.
De acordo com a “Pesquisa Doação Brasil”, realizada pelo Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS), a destinação de recursos de pessoas físicas a organizações da sociedade civil totalizou R$ 13,7 bilhões em 2015, apenas 0,23% do Produto Interno Bruto (PIB) do país. O número é relevante, porém discreto se comparado a outros países, como os Estados Unidos, onde os cidadãos doaram, no mesmo ano, R$ 1 trilhão a essas organizações.
O estudo identificou que os brasileiros são motivados a doar por um sentimento de solidariedade, ou seja, veem a doação como uma forma de contribuir com o próximo. Ao contrário do que ocorre em outros países, em que as pessoas acreditam em determinadas causas ou transformações que querem produzir na sociedade e enxergam a doação como instrumento de cidadania.
O “CAF World Giving Index”, estudo global promovido anualmente pela Charities Aid Foundation (CAF), mede o nível de solidariedade das nações. Em sua última edição, lançada em 2017 e baseada em dados de 139 países e 146 mil pessoas, o Brasil caiu para o 75º lugar no ranking (em 2014, o país estava em 105º e, em 2015, havia subido para 68º lugar). Na comparação com a pesquisa anterior, o país caiu de 30% para 21% na doação a organizações. Na avaliação do IDIS, organização que representa a CAF no Brasil, a crise econômica pode ter afetado a propensão à doação, impactando o indicador.
O estudo apontou ainda alguns desafios para a mudança de cultura em relação à doação no Brasil: 1) Não se entende a função das organizações da sociedade civil no país; 2) Os brasileiros não enxergam o papel transformador das doações; 3) Os brasileiros não confiam nas OSCs; e 4) Os brasileiros acham que quem doa não deve divulgar que doou.
Para Andréa Wolddenbüttel, diretora de comunicação do IDIS, este último aspecto envolve o comportamento motivado pelo sentimento de humildade, que acaba prejudicando a ampliação da cultura de doação porque não estimula outras pessoas a doarem, não cria um modelo a ser seguido. “Acreditamos que é justamente por isso, inclusive, que existe um imaginário coletivo de que o brasileiro não doa. Na verdade, ninguém fala sobre isso.”
Doação no campo do Investimento Social Privado
O fomento à cultura de doação no investimento social privado se tornou uma das agendas estratégicas do GIFE nos últimos anos e tem ganhado cada vez mais atenção com o aumento da busca pela criação de iniciativas capazes de favorecer e ampliar o potencial filantrópico da sociedade.
O último Censo GIFE identificou que do total investido por seus associados em 2016, R$ 2,9 bilhões, 60% foi em programas e ações próprias e apenas 21% em doações e patrocínios de iniciativas de terceiros, o que equivale a R$ 595 milhões, 33% menos que em 2014.
Por outro lado, 78% dos investidores sociais disseram que pretendem manter ou aumentar os níveis de apoio às OSCs, além de haver aumentado também, de 21% para 35%, o número de instituições privadas que apoiam organizações da sociedade civil pelo entendimento de que é parte da finalidade do investimento social privado contribuir para o fortalecimento e sustentabilidade desse campo.
Legislação
Outro ponto crucial quando a discussão é a sustentabilidade econômica da sociedade civil organizada é a legislação, que precisa atuar em favor da ampliação das doações de interesse público no país. Essa diretriz compõe um dos eixos de atuação do projeto “Sustentabilidade Econômica das Organizações da Sociedade Civil”, realizado pelo GIFE e pela Coordenadoria de Pesquisa Jurídica Aplicada (CPJA) da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV Direito São Paulo), em parceria com o Instituto de Pesquisas Aplicadas (Ipea) e com apoio de Fundação Lemann, Instituto Arapyaú, Instituto C&A e União Europeia.
Por meio de uma consulta pública realizada no final de 2017 no âmbito do projeto, o campo identificou alguns desafios a serem superados nesse tema: complexidade da legislação atual, que dificulta e desestimula a doação; falta de transparência e capacidade de comunicação das OSCs para demonstrar o impacto de suas ações; falta de incentivos fiscais para diversos temas relevantes e doação de pessoas físicas; pagamento de imposto que incide nas doações, como o ITCMD (Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação); entre outros.
Neste sentido, simplificar os procedimentos e criar novas modalidades incentivadas; atualizar a legislação brasileira facilitando as doações de pessoas físicas e jurídicas; simplificar a contabilidade exigida para as organizações de pequeno porte, como ocorre com as micro e pequenas empresas; diminuir as tributações sobre doações existentes; e criar mais mecanismos de doação para OSCs que não estejam vinculadas a projetos são alguns caminhos apontados pelos respondentes da consulta para superar esses desafios.
As etapas da pesquisa
A diretora executiva da Conectas conta que o projeto era um desejo antigo da instituição, que já vinha conversando com outros parceiros sobre sua viabilidade tendo sido alertada sobre o alto custo envolvido em pesquisas de opinião em razão da necessidade de consultoria especializada. “A parceria com a universidade foi virtuosa nesse sentido porque nos trouxe o conhecimento, a capacidade e os recursos necessários”, comemora Juana.
Mário Aquino Alves, professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV-EAESP) e coordenador do Centro de Estudos em Administração Pública e Governo (CEAPG) da mesma instituição, explica que as etapas do estudo consistiram em um primeiro levantamento a partir da literatura internacional sobre captação de recursos, que deu base à conceituação do objeto da pesquisa, além de um grupo focal para produção dos insumos necessários para a realização de um survey online.
O professor conta que o conceito de doador médio existente na literatura internacional precisou passar por uma ‘tropicalização’ para se adequar à realidade socioeconômica do Brasil.
“Precisamos entender algumas características sociais brasileiras que diferencia o doador médio daqui. A nossa definição operacional de doador médio acabou mesclando aquilo que a literatura internacional chama de doador médio com o conceito do high-net-worth individuals[indivíduos de alta renda, em português]. Esses doadores são pessoas assalariadas ou profissionais liberais em meio de carreira cuja renda mensal é igual ou superior a 30 mil reais”, explica.
De acordo com Mário, esse público representa entre 1,3% e 4% dos contribuintes cadastrados na Receita Federal, entre 0,25% e 1 % da população em idade ativa e 70% de homens. “Trata-se de um universo majoritariamente masculino, ‘sudestino’ e ‘centro-oestino’, com 76% das pessoas com nível superior completo e majoritariamente empregados do setor privado (42%), embora o setor público tenha uma participação grande (38%). Estamos falando de um universo muito pequeno dentro da população brasileira”, observa.
A partir desse perfil, a segunda etapa da pesquisa se propôs a investigar o universo simbólico dessa parcela da população. Em abril, o estudo conduziu um grupo focal formado por seis pessoas (três homens e três mulheres) entre 30 e 56 anos com profissões constantes do escopo obtido pelo levantamento anterior. O objetivo do grupo focal foi ajudar a constituir as dimensões para um survey direcionado a esse público, cuja aplicação está em fase final.
Mário destaca como um dos grandes achados do estudo até agora a percepção da necessidade de estruturação de uma estratégia de mobilização de recursos por parte das organizações. “Uma resposta que aparece com frequência é: ‘Ninguém me procurou’. Entendemos, então, que é nosso papel ajudar as organizações a compreender que precisam pedir e a saber que abordagem usar. As pessoas não sabem o que são direitos humanos. Existe uma batalha cognitiva que foi travada somente na esfera da própria sociedade civil e que precisa ser feita na esfera pública”, ressalta.
Com os resultados consolidados, a proposta é aproveitar a expertise da Conectas em disseminar e compartilhar conhecimentos e experiências para ampla divulgação do estudo, que tem lançamento previsto para setembro.
“Essa é uma forma de trabalhar diferente da que eu tenho visto. As informações sobre captação são tratadas com certa confidencialidade para evitar competição. O fato de estarmos realizando uma pesquisa sobre filantropia para direitos humanos que vai estar cem por cento disponível online e todo mundo vai poder se aproveitar dela, para mim, traz uma ideia de colaboração na captação que é bastante inovadora, um diferencial desse projeto”, salienta Juana.
Fundo BIS: primeiro edital
O Fundo BIS foi lançado em 2017, sendo o primeiro edital para fomentar a cultura de doação no Brasil, bem como ampliar o volume de recursos financeiros doados no país. A iniciativa contemplou quatro projetos entre os 218 inscritos. As ações foram avaliadas segundo critérios como foco na promoção da cultura de doação, impacto coletivo/desenvolvimento do campo, histórico positivo dos proponentes e viabilidade de implementação da iniciativa.
Para estruturação e realização da primeira chamada, o fundo foi incubado pelo GIFE e recebeu aportes dos Institutos Arapyaú, C&A, Cyrela e Instituto de Cidadania Empresarial. O investimento total foi de R$ 280 mil em quatro frentes: inovação para promoção da cultura de doação, campanhas de comunicação e produção de conteúdo de incentivo à cultura de doação, pesquisa, produção e disseminação de conhecimento e advocacy e incidência.
Fonte: gife.org.br