Relatório aponta cenário de retrocessos na implementação dos ODS no Brasil

A quarta edição do Relatório Luz da Sociedade Civil sobre a Agenda 2030 no Brasil, lançado no dia 31 de julho, durante reunião virtual da Frente Parlamentar Mista de Apoio aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, traz informações preocupantes e indica retrocessos em todas as áreas, ainda antes da chegada da pandemia de Covid-19 ao Brasil.

De acordo com o documento, “as metas e indicadores analisados trazem luz à preocupação uníssona do Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030 e parceiros com os rumos evidentemente contrários do país à Agenda 2030”.

Produzida pelo Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030 (GTSC A2030), a publicação monitora a implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) no país. A coalizão reúne 51 organizações da sociedade civil, movimentos sociais, fóruns, redes, universidades, fundações e federações brasileiras.

O grupo de trabalho foi formalizado em setembro de 2014 a partir do encontro de diversos atores da sociedade civil organizada que acompanhavam as negociações em torno da “Agenda Pós-2015”, que resultaram na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, firmada pelos 193 países-membros da Organização das Nações Unidas (ONU) – incluindo o Brasil -, durante a 70ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2015. Desde então, o grupo atua na difusão, promoção e monitoramento da implementação dos ODS nos âmbitos local, nacional e internacional.

“Essa é a única publicação brasileira que mostra, com dados e evidências, a implementação da Agenda 2030 no país, apresentando um panorama em 360 graus do nível de implementação em todas as áreas: social, econômica e ambiental. Este ano, conseguimos analisar 145 das 169 metas acordadas na ONU. Dados variados em muitas áreas mostram que o alcance das metas já estava comprometido antes da Covid-19. O cenário atual de pandemia impõe ao país a adoção de medidas radicais para responder à crise”, afirma Alessandra Nilo, coordenadora geral da Gestos e co-facilitadora do GTSC A2030.

Metodologia

A produção do relatório contou com uma etapa de coleta e análise de dados em busca de responder aos indicadores das 169 metas dos 17 ODS adequados à realidade brasileira. Essa fase baseou-se em dados oficiais disponíveis e, na ausência destes, em estudos produzidos pela sociedade civil ou pesquisas acadêmicas.

De acordo com o documento, o grupo deparou-se com a inexistência de dados atualizados sobre 40 dos 248 indicadores que compõem as metas dos ODS, sendo que sete indicadores não são aplicáveis ou adequados à realidade nacional. 

A quarta edição do documento traz ainda uma novidade. De forma a tornar o termômetro de implementação dos ODS no Brasil mais ilustrativo, a publicação inclui um instrumento de classificação das metas nas seguintes categorias: 1) Retrocesso, 2) Meta Ameaçada, 3) Meta Estagnada, 4) Progresso Insuficiente e 5) Progresso Satisfatório.

Covid-19 aprofunda velhos retrocessos

Na análise do GT, diferente de muitos países, no Brasil, a tensão gerada pelo iminente colapso dos serviços de saúde pública e projeções relacionadas ao futuro econômico é acirrada por uma crise política jamais vista desde a aprovação da Constituição Federal, em 1988.

“Exatamente quando mais se precisa dele, o governo federal em exercício ataca as instituições públicas, desrespeita os demais poderes, deslegitima o multilateralismo e a ciência, ignorando os dramas vividos pelas pessoas nas cidades e no campo. Além de negligenciar suas responsabilidades, a Presidência da República se mostrou incapaz de coordenar esforços para responder à Covid-19”, afirma trecho do documento.

Um cenário que, de acordo com o relatório, contribui para o aprofundamento de mazelas e desigualdades, velhas conhecidas do país.

“A pandemia encontrou um país com absoluta falta de liderança e capacidade de respostas e evidenciou as profundas desigualdades e o desfinanciamento de políticas essenciais”, observa Alessandra.

A co-facilitadora do GTSC A2030 elenca uma série de evidências relacionadas a desafios em áreas como saúde, meio ambiente, moradia, saneamento básico, entre outras, que demandam respostas urgentes para um cenário de grave violação de direitos.

“Taxa de desemprego que deve chegar a mais de 14% este ano. Impactos na saúde, com déficit de mais de 40 mil leitos de UTI [Unidade de Terapia Intensiva] e insuficiência da capacidade de atendimento em várias cidades e estados. Negacionismo científico e descaso com o meio ambiente, com previsão de aumento de quase 20% nas emissões de gases do efeito estufa, uma vez que o desmatamento – fenômeno ligado a 31% de surtos no mundo, como Ebola e Zika Vírus, entre 1980 e 2013 – continua crescendo indiscriminadamente durante a pandemia. Grave falta de acesso a água e saneamento, que deixa evidente o falho planejamento urbano e o déficit habitacional que impossibilita o isolamento das pessoas nas favelas e periferias, que, por sua vez, são grupos populacionais extremamente afetados pela miséria. Em um momento em que a atenção se volta à preservação da economia em detrimento da vida, essas são as pessoas convocadas para estarem na linha de frente de serviços para que a classe média e alta possam ficar em casa.”

Teto de gastos e aumento da pobreza

Para a especialista, a Emenda Constitucional 95/2016, – também conhecida como Teto dos Gastos Públicos, que limita por 20 anos as despesas do governo, sobretudo em áreas como saúde e educação –  é um dos maiores desafios para a contenção da crise no cenário atual.

“Temos uma situação extremamente grave ainda mais aprofundada por uma política que impede várias medidas que poderiam ser utilizadas para que tivéssemos uma situação menos dolorosa. Esse panorama não poderia ser outro se não um profundo impacto na pobreza e na fome, com projeção de aumento de sete milhões de pessoas vivendo em situação de pobreza até o final do ano, o que totalizaria 48,8 milhões, ou seja, 23% da população brasileira. Por isso, temos insistido e dialogado com o Congresso sobre o tema da renda básica cidadã, necessária para que as pessoas consigam acessar uma estrutura mínima de proteção social que garanta sua subsistência em um período duro como esse”, ressalta.

Investimentos insuficientes no eixo ambiental

O relatório também aponta para a falta de investimentos suficientes na área ambiental, com o redirecionamento de atribuições e orçamentos do Ministério do Meio Ambiente (MMA) a outras pastas e com a diminuição da fiscalização.

Trecho do documento afirma que “as marcas da atual gestão têm

sido a austeridade fiscal, o combate à ciência, a flexibilização da legislação ambiental e de controle das atividades econômicas para preservação do meio ambiente, o que compromete todo o ODS 9”. Outra passagem do texto lembra que, em 2019, o governo federal cogitou extinguir o Ministério do Meio Ambiente e reduziu suas atribuições e que, no mesmo ano, o Ministério gastou R$ 2,6 bilhões de um orçamento autorizado de R$ 3,6 bilhões.

“Temos 43 milhões de pessoas atingidas por secas e estiagem, 90% delas no Nordeste do país. Apesar disso, o gasto do governo federal em 2019 com prevenção de desastres naturais foi o menor em onze anos, menos de um terço foi utilizado. Em 2019, também tivemos quase 30% de aumento na taxa de desmatamento em relação ao ano anterior. A coleta seletiva residencial alcança apenas 38% dos domicílios, mas somente 0,9% dos resíduos alcança reciclagem completa, levando mais de 75% desses materiais para aterros sanitários e 25% para lixões a céu aberto. Sem contar o aumento de 220% na liberação de agrotóxicos. Todos esses dados mostram que não estamos no caminho de alcançar nossas metas de diminuição de gases poluentes”, afirma Alessandra.

Desigualdades se ampliam

Alessandra observa essa mesma tendência de queda nos investimentos públicos em áreas como a de políticas voltadas às mulheres, que apresenta diminuição em mais de 75% no uso dos recursos desde 2015. “Não tivemos execução dos recursos previstos para este ano. A execução foi pífia”, afirma.

Da mesma forma, a co-facilitadora do GTSC A2030 aponta para a queda dos investimentos públicos em todas as áreas sociais: saúde, educação, assistência social, cultura, ciência e tecnologia, entre outras.

“O resultado disso é que todos os índices de desigualdade cresceram, com grande ênfase em saúde, educação e trabalho, áreas das quais dependem o presente e o futuro do país. Mas também no acesso a água e saneamento, na área da moradia, na promoção de igualdade de gênero, segurança – outra área que sofreu diminuição dos investimentos frente a um contexto em que cresce a violência contra mulheres, povos indígenas, pessoas negras e quilombolas, LGBTIs [Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Intersexuais], trabalhadores da imprensa e defensores de direitos humanos.”

156 recomendações para o futuro

Frente aos graves retrocessos e ameaças mapeados, o relatório reúne 156 recomendações apontadas como soluções e caminhos possíveis para superar os desafios.

Entre os destaques estão:

  • Revogação da Emenda Constitucional 95 e recuperação orçamentária dos diversos serviços públicos, como condição para viabilizar projetos e programas que atendam aos fundamentos constitucionais do estado democrático de direito;
  • Revisão da reforma trabalhista; Revisão da reforma previdenciária; Construção de um sistema tributário progressivo, por meio da implementação de Reforma Tributária Justa e Solidária;
  • Implementação de uma Renda Básica Cidadã que reduza as desigualdades, preserve e fortaleça o sistema de proteção social;
  • Ampliação do orçamento do MMA e reativação do Fundo Amazônia; Aumento substancial do investimento em ciência, tecnologia e inovação voltadas ao desenvolvimento sustentável;
  • Reinstituição da política de promoção da igualdade racial e superação do racismo;
  • Incorporação do direito ao saneamento básico no artigo 6º da Constituição Federal;
  • Revisão da posição do Brasil nas negociações, em especial no âmbito da UNFCCC [UNFCCC] e das COPs [Conferências das Partes], voltando a fortalecer a cooperação internacional e resgatando a posição de liderança construída ao longo de décadas pela diplomacia brasileira; entre outras.

“As sequelas dessa crise serão ainda mais gravemente sentidas nos próximos meses e anos e vão forçar novos hábitos e maneiras de estar no mundo. As respostas necessárias extrapolam fórmulas implementadas nos campos da economia, da política, das relações sociais e do meio ambiente, já tão degenerado pelo uso insustentável dos recursos naturais. Mais do mesmo não adianta. Cabe a nós agora criar outras formas de comunicação, de produção e consumo, de educação e de cuidado com as pessoas e com o planeta, alimentando parcerias verdadeiramente sustentáveis que nos levem à prosperidade e à paz. A resiliência exigida no presente é também nossa aposta no futuro. Um futuro comum e solidário, onde políticas públicas sejam construídas de baixo para cima, acolhendo a todos e todas, com instituições fortes, transparentes e democráticas, sem deixar ninguém para trás”, afirma trecho do documento.

Saiba mais

Relatório Luz da Sociedade Civil sobre a Agenda 2030 no Brasil está disponível em português e em inglês no site do GTSC A2030.

Por: Gife

Fonte: gife.org.br

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